Ciclo Férias do Vagabundo

TREM AZUL

A chuva começou assim que fechamos os olhos. Logo depois do galão de vinho, das cantorias, dos tapas num baseado. Alguém jogou um poncho na minha cara, única coberta na única vez em que dormi debaixo de um temporal. Choveu e trovejou a noite inteira.

Bom sinal: a procura por cogumelos prometia viagens e desvarios já na primeira hora da manhã. Nada como adormecer com esperança de piração no dia seguinte.

Nao sei quem acordou primeiro, se Peixe, Ligia, Cesar, Marlit, quem mais? A manhã linda nos carregou direto pro outro lado dos trilhos à procura de bosta de vaca.

Cabeças abaixadas, olhos de falcão esquadrinhando a relva molhada à procura de botões recém abertos. Os cogumelos eram as maçanetas que uma vez torcidas (e mastigadas e liquefeitas e deglutidas) abriam as portas do Huxley para o risco e o perder das estribeiras. Tudo por aquele gostinho de maravilha.

Foi naquela posição curvada, a atenção sequestrada pela expectativa, que ouvi distante a flautinha do Cesar. Tinha se separado de nós e não nos encontrara na chuva da noite passada. No momento, era o detentor daquele hábito enjoado de tocar pífano sem parar. No meu caso como no de muitos, o hábito voltaria algumas vezes como maldição.

Continuei focado no cocô de boi enquanto o som da flauta exercitou seu efeito Doppler às minhas costas. Como não levantei a cabeça, não percebi que não nos vira. Seguiu direto até a próxima estação, soubemos depois.

Não é coincidência que no dia seguinte fomos ao mesmo campo à beira da ferrovia. A procura bastava e era o caminho em si mesma; até hoje não sei aonde chegamos mas quem se importa com essas coisas? O som crescente de um trem distante desta vez virou nossas cabeças.

Era o Trem Azul voltando pra cidade e numa janela, estupefacto, quem vemos? O Cesar, que ainda teve tempo de abanar. Completamente duro, tinha parado na delegacia do vilarejo próximo e foi um delegado quem pagou sua passagem de volta à capital. Quanto a nós, nos restaram algumas horas pra achar graça de tudo e torcer mais algumas maçanetas.

***

TIJUCA & SANTA TERESA

Floresta
Em 1973, atravessei uma rua na saída de Porto Alegre e peguei uma carona num Fuca em direção ao Rio de Janeiro. Comigo estavam os mais chegados, os irmãos Panela, Keijo e Mimi, mais o deus ‘escandinavo’ Evaldo. Nos apertamos no carrinho e o motorista, boa praça, conversou com a gente o tempo todo.
A viagem não foi direta. Paramos no Paraná e o grupo se desmembrou. Na manhã seguinte, segui viagem num caminhão mal-cheiroso, enquanto os outros pegaram um Simca que quebrou na estrada. Eduardo e Bartinha, que haviam chegado no dia anterior, foram nos buscar na Central do Brasil, e nos mostraram o caminho para a Floresta da Tijuca.
No pé da colina, nos esperavam o violeiro argentino Ciego e o uruguaio Danilo, que tinha o produto que nos alimentou por quase três meses. Para chegar no barraco, era preciso sair da lomba e entrar arvoredo adentro, na trilha de chão batido. Depois de uns cinco minutos de caminhada, a visão de nossa choupana acendeu a esperança de tomar o primeiro banho depois de três dias na estrada e descansar os ossos.
Tivemos de nos contentar apenas com o descanso; não havia água corrente, senão a de um córrego que descia a lomba dentro da floresta, vindo sabe-se lá de onde. Pela duração de nossa estadia, ele serviu como banheira, pia de limpar pratos, tanque de lavar roupas e água fresca para matar a sede. Ah, sim, e um pouco mais abaixo, lugar ideal para se cagar.
Líderes naturais eram o Panela, quieto, e o Evaldo, de olhar penetrante, daqueles que espiava dentro da gente. Parecia mesmo um deus nórdico por causa de sua altura e cabelos longos e ruivos. Infelizmente, os dois já deixaram este planeta e é a memória deles que me faz pensar nesta viagem. Grandes camaradas.
Dos outros também guardei traços. Até hoje, por exemplo, vejo o sorriso meigo da Mimi em pessoas que amo. E lembro que o Keijo andava pra lá e pra cá numa cueca branca cagada, mas nunca vi ninguém gozando com ele. No mais, higiene pessoal estava longe de ser prioridade; nada comparado a se chapar, sempre, ou não ser pego pela polícia, nunca.
Depois de uns dois dias, mais agregados chegaram, como uma argentina enorme e gostosa, que o Ciego terminou comendo, e uma outra uruguaia, bem magrinha, que vivia discutindo com Danilo. Não sei por que não me lembro do nome de nenhuma delas. Eduardo e Bartinha não aturaram as acomodações e picaram a mula logo logo.
Mas não havia como reclamar daquele paraíso sujo. Muitas manhãs vimos revoadas de saguis sobrevoar o alto das árvores acima de nosso telhado, os sagüizinhos na cacunda de suas mães, dando guinchos de satisfação pela vida que a natureza lhes deu. Também não se queixava da rotina: levantar, escovar os dentes e pegar carona para a Zona Sul.
Comunas
Tempos difíceis. Para uns, a ditadura ardia no rabo. Para nós, fazer artesanato de couro e bijuterias de miçanga para vender para turista nunca dava para o gasto. Sempre se tinha de complementar os ganhos mangueando. Um dia, o Cláudio Marzo, astro de novelas da Globo e de um filme maravilhoso que só vi anos depois, Nunca Fomos Tão Felizes, me deu uns trocados.
Os dias eram passados na praia e, em ponto de meio dia, já tínhamos o suficiente para comprar um ou dois Panetones e uma Coca-Cola litro. Depois, baseado às escondidas, e voltar para a labuta de pedir gorjeta para quem passasse a caminho de suas vidas. Em Ipanema tínhamos concorrência de outros hippies gaúchos ou gente de outras partes.
Alguns acampavam na praia mesmo, e o Dops se divertia os prendendo pelo menos uma vez por semana. Mas depois apareciam de volta. Acho que o Doi-Codi não prestava a atenção no que os companheiros engajados consideravam ‘a geração do silêncio.’ E apesar das drogas leves e pesadas, não me ocorre nenhum incidente perigoso com a polícia.
O consenso era de que atraíamos ciúme, porque decerto nos achavam vagabundos, vivendo de cu para a lua, e realmente não queríamos nem saber. Mas também levávamos nossas porradas, afinal vida de rua não é mole. Ao mesmo tempo, alguns de nós não se achavam pertencentes a um grupo ou outro, e vez em quando, iam a alguma reunião secreta, debater os filhos da puta.
De volta à cabana de barro, o negócio era preparar comida, dar um tempinho, e depois receber a ‘comunhão’ sagrada de cada dia: todo mundo se picava com a morfina do Danilo, e dividir seringas era o menor de nossos problemas. Nunca deu barraco, mas depois de algum tempo, os ossos de todo mundo começaram a doer.
Se cantava e se tocava e alguns, sortudos, até trepavam na calada da noite. Uma vez, desci o córrego e revisei todas as músicas que sabia na vida, à capella, aos berros e cheio de si. Quando acabei o repertório fui cumprimentado, mas os mosquitos não me perdoaram: tive coçeira por dias e em lugares de minha anatomia que ainda não tinha conhecido.
Um dia, estávamos de bobeira quando o grande Baden Powell apareceu por lá, com um punhado de cocos verdes e milhos para nós. Morava ali perto, ficamos sabendo, e já o tínhamos visto,  sempre bêbado, andando pra baixo e pra cima num Peugeot preto, com motorista. Acho que estava injuriado porque ninguém se lembrava dele no Brasil, naquele período particular.
Baratas
Vez em quando, fazíamos a jornada para o cortiço colonial de Santa Teresa onde estavam outros gaúchos. Aliás, entre todos, o único apelidado de Gaúcho, nascera no Rio: eu. Estavam lá o Tuca, o Nando, não sei mais quem, pois a população era flutuante, mais um casal bi-racial que tinha uma menininha de uns quatro anos que me adorava. Não me pergunte seu nome.
Quando a casinha da Tijuca despintou, nos esprememos de vez naquele apê avarandado de Santa. A vista da favela do Pavão, a qual às vezes subíamos para comprar baseado, era deslumbrante, e lembro que em torno do Carnaval, fomos lá compartir uma roda de samba; um monte de roqueiros cabeludos em meio aos Mestres de Sala. Deu sambaroque e todo mundo se entortou.
Viver naquele morro também significava repartir o espaço com baratas tão grandes e numerosas que só faltavam falar, ou melhor, reclamar de nossa presença. Em outra situação, nos matariam de susto, mas como eram muitas, nos habituamos. Quer dizer, desenvolvemos maneiras de manter a convivência pacífica.
Todo mundo sabia que, ao acender a luz, era preciso esperar alguns minutos para que o chão clareasse. Polidas, era muito raro uma ou outra vir ao seu encontro, como acontece em esbarros fortuitos e malfadados. Assim que elas entrassem em seus escaninhos, era quase certo que não se veria mais nenhuma, pelo menos enquanto a luz estivesse acesa.
É preciso entender: dentro das paredes daqueles labirintos residenciais decrépitos, deve haver uma média de umas 100 baratas para cada um, e algumas devem ser mesmo descendentes dos tempos de Dom Pedro I. Assim, há uma certa conivência com os moradores que só raramente é interrompida. Quase como um acordo tácito.
Naqueles tempos magros, o prato principal era o mingau, especialidade do Nando. Ele sabia exatamente como tornar um cremezinho insosso na refeição mais nutritiva e satisfatória do dia, ou melhor, da noite, que era quando todos esperávamos ansiosamente ao redor do fogão para que ele desse o ponto certo na mistura. E bota misturar nisto. E canela, é claro. Realmente, nunca fomos tão felizes.
Dormíamos na sala, em esteiras. O acordo implícito entre humanos e insetos quase sempre funcionava bem. Mas um dia, cedo de manhã, o Tuca deu um salto mortal no espaço, e no mesmo movimento, chutou com toda a força o que parecia ser apenas o ar, mas que, se soube depois, era uma barata que caminhava sobre seu pé.
Tão rápido e potente foi seu chute que ela foi projetada à jato na parede oposta e se espatifou em dois. Por via das dúvidas, daquele dia em diante, erguemos uma barreira de chinelos entre a sala e a cozinha.

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AMAZÔNIA VIA ACRE

Estávamos prontos, amarrados nos bancos de metal, quando o piloto falou: desce todo mundo, o avião atolou.
Depois de dois dias no ar, e duas aterrissagens sem problemas, só mesmo o barro do ‘aeroporto’ de Guajará Mirim foi capaz de travar nosso valente DC-3 do Correio Aéreo Nacional. Resultado: todo mundo se enlameou empurrando o avião.
Nas margens da pista, os índios deram gargalhadas. Não deve ter sido a primeira vez, mas não voltei para uma segunda. Seguimos para nosso destino, o Acre, onde passei três meses com a família do amigo Brasileiro.
Juntos conhecemos um pedaço da floresta amazônica, que devia ter então pelo menos duas vezes o tamanho atual. Mas enquanto o Brasileiro saiu do Rio num vôo comercial, embarquei no Douglas, porque como filho de militar, tinha direito a viajar de graça. Decolei três dias antes dele, mas chegamos à cidade no mesmo dia. Não reclamo; não sabia então, mas foi uma das grandes viagens da minha vida, um milagre mesmo, porque não tinha um tostão e fui tratado como um rei.
No caminho, passei uma noite em Porto Velho cujo centro, naquele inverno chuvoso de 1973, estava tomado por um acampamento gigante de ciganos. Já tinha me dado conta que estava em outro país, mas me senti ainda mais estrangeiro quando tive dificuldade de entender o que diziam. Preconceituoso, achei melhor não pedir explicação.
A vastidão e disposição geográfica norte-sul tem muito a ver com as diferenças tão radicais entre as regiões do Brasil. Mas isto é tudo que vou falar de minhas observações sobre o país. Chegar ao noroeste, selvagem e mestiço, vindo do sul, urbanizado e branco, é como receber um pontapé na bunda. A gente cai de quatro e é melhor mesmo não levantar.
Naquele momento, então, análises sócio-econômicas não poderiam estar mais distantes de minhas preocupações imediatas, de adolescente ainda incerto sobre o que está vivenciando. Memórias são capciosas, e as lembranças limitadas pelo contexto. Que sendo visceralmente novo, não oferece referências confiáveis. É em situações assim que se busca conforto em recursos familiares.
No nosso caso: Romilar. Como não se bebia e baseado era raro, a farmacêutica foi nosso consolo, pelo menos enquanto ficamos em Rio Branco, que não era mais do que alguns quarteirões, e dois tempos do dia distintos: antes e depois da chuva. Xaropes e filmes de faroeste, que vimos às pencas. Ah, e o clube noturno onde o crooner cantava Amada Amante em espanhol. Que vida.
Quando fomos à Xapuri, não tínhamos idéia quem era Chico Mendes; o que queríamos era experimentar Ayahuasca e viajar pro interior pareceu ser uma boa idéia. Com a falta de árvores para proteger o solo, a erosão da chuva era violenta e imediata. O ônibus parou no caminho, porque à nossa frente, havia um poça de água enorme, com um pequeno caminhão dentro, do qual só se via a capota.
Chegamos à Brasiléia de madrugada e o dono da pousada nos colocou num quarto no fundo do quintal. Sem luz elétrica, a única coisa que nos ofereceu foi uma bomba de flit cheia de querosene. Depois descobrimos para que: os insetos eram ousados e grandes como camundongos, e voavam. Quase nos asfixiamos tentando mantê-los à distância.
Acordamos cedo, suados e quase surdos. Já esperávamos pelo calor, mas o que era aquele ruído intenso, como se alguém estivesse riscando nosso teto de zinco com um pedaço de metal? Ziiip, ziiip, um atrás do outro. Foi aí que percebemos onde tínhamos acabado de passar a noite: uma antiga cozinha, paredes pretas de fuligem do fogão a lenha, a pia sem água e nossos dois catres.
O chão batido e a coleção de canecas e pratos de lata completavam os detalhes rústicos. Realmente, o decorador tinha caprichado nos toques tipicamente regionais, e a presença de uma privada de madeira no mesmo recinto dava um toque de classe ao ambiente. Felizmente não era usada há anos.
Na correria para sair de lá o mais rápido possível, quase nos esquecemos de investigar a origem do barulho que nos acordara. A meio caminho do pátio, paramos e nos viramos devagar: uns 15 ou 20 urubus nos observavam, agora quietos. A culpa era deles, decolando e aterrissando em velocidade no telhado. Como fedíamos mas ainda não estávamos podres, depois de um momento, nos esqueceram.
Pedimos a conta e pensamos em atravessar a fronteira para conhecer Cobija, na Bolívia. Mas foi só ver os hóspedes do hotel boliviano se divertindo na piscina que perdemos o saco. O moço que nos dera o flit comentou que era mesmo uma pena, porque a diária lá era metade do que tínhamos acabado de pagar. Acho que foi por isto que os urubus nos acordaram: só pra ver nossa cara de otários.

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TATU

Na hora da volta, nos despedimos de Julio e Ligia. O primeiro Fuscão foi deles, e só depois Zé e eu estendemos os polegares.

Continuávamos viajando. Não fazia muito tínhamos comido o primeiro cogu e não paramos de achá-los até o entardecer. A estradinha de terra se enveredava direto pro coração da mata. Árvores cobrindo a luz da manhã, do meio dia e do início de tarde não fizeram diferença: nosso céu estava no chão.

O dia passou assim entre mastigadas e pirações. Mas a hora de voltar pra casa sempre chegava e reduzir a velocidade da mente era como travar um carrinho de montanha russa.

Se me perguntas, acho que cantamos, dançamos, nos despimos, nos beijamos, tocamos a beirada da ribanceira sem fundo, mas pra falar a verdade, não sei bem o que fazíamos quando estávamos loucos.

Em algumas horas, tudo seria diferente. As estrelas do rock, cinema e futebol nas paredes do quarto, os discos, mesmo a calça boca-de-sino eram contrastes confortáveis ao que buscávamos nos arredores da cidade, seja lá o que fosse.

Olhamos o Fuscão acelerar com certa tristeza. Quem sabe amanhã estivéssemos todos de volta, prontos pra outra, felizes por tentar. Quem sabe no sábado o Milton e a Lidinha tambem quisessem vir. Mas e se de repente, 30 anos se passassem?

A foto que o Zé tirou na carroceria da caminhonete, desapareceu. Julio, Ligia e eu como nunca mais nos fotografaram: a sombra art nouveau nos olhos da Ligia, o cabelo longo do Julio, minha cara deslavada de sempre. Sua perda foi a perda de um pedaço impresso daquele dia.

Quando o caminhão parou, meus esforços pra não enlouquecer sofreram revés quase fatal. Assim que entramos na cabine, o soco de um fedor terrível afundou meu estômago.

Por quase duas horas, aquele cheiro podre subiu e desceu o esôfago, enquanto meus pés tocavam um objeto pontudo e móvel debaixo do assento.

Seria o cabo de uma vassoura? Mas desde quando varrer é prioridade de alguém tão fedorento? Espingarda? Então pra que aquela adaga enorme amarrada no cinto? Baixar a cabeça e espiar seria como colocar um dedo na garganta.

Quando chegamos, em meio a golfadas de ar fresco na esquina da Avenida Farrapos, dei uma boa olhada: de baixo do assento mau cheiroso, um tatu enorme e cinza olhou bem nos meus olhos. O Zé caiu na gargalhada.

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PINHEIRA

O primeiro a nos receber foi o odor da maresia. O passado de pescarias e pedaços de peixe ensopava as paredes do barraco. Nada a ver com o nosso bando, que já trazia seu próprio cheiro de estrada e de falta de banho nos corpos suados.

A primeira coisa a fazer foi enrolar um baseado. O Cau foi sacando seu violão, a Marcinha explorando o outro quarto e a maioria já procurando um canto pra relaxar os ossos. Ninguém pensava em pescar.

Ninguém trouxe muita coisa também. A roupa do corpo, um instrumento ou outro e a vontade de não fazer nada. Ah, e o Fonfon, que como sempre, arranjou um jeito de trazer seu apê na mochila branca de lona grossa.

Só levei calções e camisetas. E uma escova especial pra domar meu afro com uma certa arte. De outro jeito, era como caminhar com um quilo de arame farpado na cabeça.

Mais um pouco e estaríamos a caminho da praia mas não a da baía em frente, onde baleias vinham se acasalar no inverno. Melhor era a Prainha do outro lado do morro gramado, onde a vista cruzava o mar e um touro ruminava. Ninguém tinha medo dele.

Coié lembrou a vez em que foram caçar cogumelos no campo e quando cruzaram a cerca, Cida chamou a atenção de uma vaca a mais de um quilômetro. Assim que a viu, começou a se aproximar. Estavam contornando um charco de água da chuva quando se deram conta: aquela vaca era louca.

Por alguma razão, cismou com Cida. Ninguém teve tempo de perguntar por que e na correria se enlamearam no charco. Até hoje não se explica o ocorrido e, ao que se saiba, nunca mais voltaram àquele campo.

Mas não este touro. Olhou pra gente como se não existíssemos e seguiu seu caminho. Meses depois ouvi falar que, depois de castrado, também ficou louco o coitado e, numa churrascada comemorativa, chifrou um adolescente. A Cida deu graças a deus que não era ela.

A semana passou assim, quente, banhos de mar, noitadas de baseado, vinho e violões. Naquele tempo, se tinha tempo pra estas coisas. Foi no amanhecer de uma daquelas noites que me dei conta que a mochila de lona grossa do Fonfon tinha queimado até as cinzas, a centímetros de minha cabeça. Por via das dúvidas, dei uma aparada no afro assim que cheguei em casa.

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COSPE, CRIATURA

O brigadiano me encheu de porradas na frente dos meus amigos. Era uma quarta feira cinzenta, no parque, e não me dei conta que me reconhecera de cara; uns dias antes, me pegara cochilando ao lado da Lígia, debaixo de uma árvore. Nos acordou aos gritos. Me acovardei mas ela o chamou de chinelão. Hora de pagar meus pecados.
A Redenção sempre foi um terreno meio baldio, de vadios e policiais procurando gente para prender, ou pelo menos, socar. Sempre tinha magrinhos fumando baseado pelos cantos, e à noite, repartiam a república gramada e popular com uma rafoagem de assaltantes, pironautas e prostitutos, cada um enrustido como aranhas atrás de suas moitas.
Éramos não mais do que moscas tontas, presas fáceis para todo tipo de predador. Mas não fomos vítimas, uma vez que este espaço aberto onde se encontrava os camaradas e trocava idéias madrugada adentro, também era nosso. Viajando de pedra, ou dando banda e refresco na barra pesada do Brasil dos anos 70, enchíamos aqueles passeios com nossas pegadas.
Acho que quando a patrulha nos surpreendeu, estávamos mesmo carregando contravenção nos bolsos. Dar uma esticada no parque para apertar um era parte de quase todo programa. Meu erro foi não levar a sério quando me mandou cuspir. Acho que não entendi bem, e se estava um pouco atordoado naquele momento, não me pergunte como me senti depois.
Me puxou pelo braço – acho até que teve a delicadeza de pedir pra um subalterno para segurar a lanterna – e me deu um pontapé no estômago. Me dobrei, contorcido, e sem puder me desvencilhar, senti um monte de socos nas costas, na coluna e no fígado, e depois um tapa no pescoço. Lembro que pensei que estava sendo cuidadoso para não deixar marcas.
Que nada: no momento que, por assim dizer, dei as caras, pemba! Levei uma chapoletada no ouvido que me deixou zunindo. Talvez tenha sido melhor: escutei pouco do que se seguiu. Acho que uma amiga protestou, chocada pelo som de seus punhos no meu corpo desnutrido, mas foi contida pelos outros porque senão, já sabe, ia sobrar pra ela também.
Pra um inseto voando por cima, a cena deve ter sido bizarra mas não incomum: uma clareira, uma turma em semi-círculo assistindo impotente, e um guarda de botinas lustradas sentando o sarrafo num mulato cabeludo. Tudo à luz da lanterna que o cabo tão gentil fez questão de operar, como um diretor de fotografia de um filme de horror.
Não sei se por compensação psicológica ou puro medo, apaguei muito da memória a dor física que devo ter sentido. Ou ele não bateu muito firme mesmo, ou cresci acostumado a levar surras do meu pai, o que deve ter adiantado o serviço. Ele socou e chutou à vontade por uns bons (pra ele) minutos, até que cansado, entediado, saciado, sei lá, parou.
Se já conhecesse a canção, diria que me senti como a Geni. De outra forma, a sensação foi a velha conhecida minha: alívio quando a dor recede, o que não acontece muito seguido. Mas pelo menos, e aí vem a compensação aquela, não me quebrou os dentes. Estes foram quebrados, ao longo dos anos, pelo infinitamente mais prazeiroso gosto por leite condensado.
À certa altura, me dei conta do que estava me dizendo, a pretexto de me bater mais: Cospe, o que era uma forma barata de saber se o meliante estava intoxicado com maconha. Quando finalmente cuspi, acho que se deu por satisfeito, sabe-se lá por que lógica perversa. Como digo, se tivesse a coragem, teria repetido o que a Lígia lhe chamou: Chinelão.
Mas só mesmo em delírios retroativos, e sonhos de grandeza, me imagino como um paladino da rebeldia, desafiando a autoridade e liderando a contestação. Com a realidade constantemente subversiva, todo mundo era suspeito. E a menos que saísse por aí, bandeira enrolada no corpo, cantando ‘Eu Te Amo, Meu Brasil,’ a regra era ser flagrado por um PM recalcado.
Como exemplo proverbial da violência doméstica, banquei a mulher de brigadiano, que apanha mas não reclama. Afinal, tinha gente sendo torturada, desaparecidos, enterrados vivos. Eu não seria pretensioso de reclamar de dor tão ridícula. Minha geração, chamada do silêncio, era assim; tinha pouco cacife na batalha ideológica sangrenta e injusta do período.
Fiquei na minha. Não foi a primeira vez que fui humilhado na frente de amigos. Mas o gosto amargo de ter sido abusado numa quarta feira cinzenta em meio aos anos de chumbo persiste. Entre todas as quartas, incluindo a de Cinzas quando nasci, posso lembrar de pelo menos uma dúzia em que o mundo não me cobriu de pontapés.

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A ERVA & AS TRÊS VINHETAS

Fumei maconha dos 17 aos 47 anos. Tive momentos de lucidez aguda e de tonteira estúpida com baseado, mesmo que outras drogas também tenham me atordoado. Deve ter afetado a memória, mas não estou certo se o que esqueci valeria a pena lembrar. O que não esqueço é que meu passado chapado se interliga a três incidentes, três vinhetas curiosas.
A noite dos 12 baseados, por exemplo, foi o momento em que cruzei aquela fronteira imaginária entre o fumar por piração e se entregar ao torvelinho. Até então, tinha queimado fumo em festas, com amigos, sozinho, a caminho de algum lugar, ou por falta de outras coisas a fazer. Naquela noite na Venâncio, eu e meus melhores amigos atingimos um certo zênite qualitativo.
Já tínhamos fumado mais, tanto antes quanto depois. Mas enquanto fechávamos os bauretes, um depois de outro, e escutávamos o George Harrison e o Pink Floyd, o mundo adquiriu uma cor e uma densidade que não ainda experimentara. Foi naquela época que tomei a primeira das dezenas de pedras, e me empanturrei com cogumelos, em viagens adoidadas e quase esquecidas.
As bagas que ficaram dos 12 foram devidamente recicladas, em novos fininhos enfumaçados; nunca mais seríamos tão zelosos. Naquela noite, me tornei capitão de meu hábito e embarquei numa jornada que me levaria à maturidade. Quando achei que não tinha mais fissura para fumar todo o dia, era uma pessoa diferente, vivendo em outro país e falando uma língua estrangeira.
Antes disto, atravessei o Brasil de carona, sozinho, e com uma paranga respeitável na mochila. Maconha era uma moeda, inter-cambiável por bens materiais e confortos comunais. Com ela, me senti paranóico em ônibus e vias públicas, e inspirado nas conversas e na música. Segui o Luis Melodia, e me apeguei ‘da coisa sem haver engano.’
O ápice desta intimidade com a contravenção, e vinheta seguinte, aconteceu no trem entre o Rio e São Paulo, tarde da noite, e à caminho de volta pro sul, onde não aparecia há mais de ano. Passei umas horas cantando com um grupo animado que conheci na estação, dividindo canções e cachaça. À certa altura, me retirei pra os bancos de trás e tentei puxar um sono.
No meio da noite, o trem fez uma parada não programada. Um pelotão de policiais invadiu o vagão e revistou meus ex-compadres de samba. Alguém reclamara da baderna, anonimamente, como era comum na época. Eu, como um Pilatos traidor, continuei de olhos fechados e não fui notado na batida. Os outros foram despojados do que tinham e passaram a noite na cadeia local.
Até hoje imagino a desgraça que teria sido se tivessem me pego com aquela mutuca toda. Sem tostão ou conhecidos naquela terra de ninguém entre os dois estados, provavelmente teria mofado numa cadeia fedorenta, sabe-se lá passando que humilhações. Também não sei o que me tocou e me fez abandonar a roda e ir dormir. Mas daquela, escapei bem.
Se o episódio foi a fina flor da sorte, a terceira vinheta foi a que quase desencarrilhou minha vida, e deixou sequelas que até hoje me acompanham. Uma tarde, cheguei em casa, na pseudo-comunidade que dividíamos na Floresta, e achei estranho que estivesse vazia; nenhum dos três outros moradores, nem os vagaus que costumavam passar por lá, estavam.
Mas a ausência durou pouco. Uma batida na janela foi o suficiente: os ratos vieram me buscar de camburão. Os outros já estavam na delegacia. Foi a pior viagem. Em dois dias, fui para o presídio com outros dois magrinhos conhecidos, todos se borrando de medo. Ainda assim, salvamos nossos cuzinhos, porque o advogado teve pena e nos recomendou isolamento.
A agonia durou uns quatro dias, mas até hoje arrasto este complexo de lixo, de não merecer a liberdade. Depois de ver o inferno por dentro, fica a dúvida: será que nosso lugar não é mesmo lá dentro? Até o delegado, que era aluno do meu pai, se comprometeu a me trancar pessoalmente na cadeia, e jogar fora a chave, se eu ousasse fazer de novo ‘esta maldade’ pro professor.
Fiquei com a culpa no cartório, o que me impediu de me inscrever na faculdade naquele ano, e ao menos em parte, detonou meu sonho de me formar. Terminei um diletante profissional, sem diploma ou validade, tentando compensar com minha curiosidade e deleite pela leitura, meu irredutível fracasso acadêmico. Até hoje certos amigos não esquecem que não tenho curso.
Em trinta anos, tive prazeres raros com um baseado na cabeça. Algumas de minhas melhores idéias me ocorreram enquanto inebriado por uns pegas. Mas no fim, tenho só estas três vinhetas pra invocar a cannabis: primeiro, o êxtase, depois um golpe de sorte, e finalmente, um trauma inesquecível.

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COMUNIDADE, UM CARALHO

Se dividia tudo: comida, dinheiro, escova de dentes. Baseado, violão and namorados. Credo feito para manter o bando alinhado, pronto pro sacrifício. Mas macacos velhos não quebravam este galho; hippie que se preza, guarda um pouco pra amanhã, diziam sem respeito.
No cortiço de Santa Teresa, tinha uma outra comunidade no apartamento do lado. Era controlada por um destes malandros experientes, que sabia quando era hora de manter os estômagos semi-vazios e as bocas caladas. Ele anotava tudo, todo mundo tinha um nome e conta.
Neste caos organizado, tinha sempre gente chegando e residentes expulsos, os queridinhos do chefe, e a contestação entre os dentes, murmúrios que raramente se transmutavam em gritos de protesto. No fim, todo mundo seguia a risca o roteiro e dormia chapado.
Tínhamos desprezo misturado com inveja daquela turma bem lavada, e suas rotinas ensaiadas. Não teríamos como seguí-los em seu modelo de eficiência, mas não duvido que alguém tenha secretamente solicitado admissão naquele clube. Não lembro de quem.
Também seguíamos rotinas, mas como não estavam em preto no branco, quase ninguém se flagrava de que era seu turno de sair pra luta e manguear em Copacabana. O que sempre acabávamos fazendo, chuva ou sol, porque afinal, chegava uma hora que batia a fome.
Mas por trás de tudo havia esta hipocrisia insolente, desafinando o coro do paz e amor, este conservadorismo enrustido, que permeava nossas relações. A maioria gramava, mas os de olho vivo sabiam a hora exata de puxar aquela carta pragmática e vencer as disputas.
Acho que é daí que reside minha falta de habilidade de distinguir a diferença entre sinceridade e manipulação. Certamente nunca estava entre os que se davam conta a tempo, ou sabiam o que dizer na hora apropriada. Resultado: pé molhado, chuva, mangue na Zona Sul, etc.
Falando em falta de auto confiança, tinha a questão do desempenho. Que eu saiba, não tínhamos ‘queridinhos.’ Mas alguns se destacavam pela eficiência com que traziam dinheiro pra casa, consistentemente. Me defendia mas não era a mesma coisa.
A convicção de alguns na hora de abordar estranhos era notável. Com decisão, caminhavam na direção do transeunte e pediam, olhos nos olhos, a fala clara e resoluta. Seguido, tive a impressão de que eram aqueles que davam quem pareciam agradecidos pela oportunidade.
Outros tinham lá seu jeito. Como disse, me defendia mas não era um gerador de receita. Às vezes, ganhei gorjetas por pura pena que devem ter sentido de mim. Frequentemente não sabia muito o que dizer, mas não por achar que não deveria pedir.
Este tipo de ética cresceu em mim muito depois. Me enrolava com as palavras, exatamente como estou fazendo agora. Contava uma estória sem eira nem beira. Ou uma piada sem graça ou fim. O interlocutor, estupefato, dava o que podia pra se livrar de mim.
Me dava ainda pior quando encontrava competição. Uma vez, um ‘hippie’ ameaçou bater meu brim se eu não pirasse de seu ponto. Saí correndo, é claro, coração pela boca, imaginando o que dizer em casa. Ainda não tinha aprendido a disfarçar minha covardice.
Mas o mundo é grande e mesmo titubiantes como eu acabam achando seu posto. A vida nos degraus de baixo do alfabeto é totalmente estranha pro time da frente, os tipos A, que não precisam ter idéia de como ela funciona. Estão ocupados com a admiração de outros.
Vez que outra, acontece a interação, e se tanta repetição de momentos humilhantes e solas de sapato gastas valem pra alguma coisa, é pra aquele momento em que se é capaz de representar o papel de líder tão bem que impressiona até os nascidos pra liderar.
Tive alguns destes momentos. Nunca duram muito mas com prática, aperfeiçoei a arte de sumir na hora certa, antes que a mágica se evapore, ou que a expressão do meu olhar, esta traidora filha da puta, me entregue de bandeja e eu seja apedrejado. Tive estes também.
Aquela república sem grito onde passei parte de minha adolescência foi mais um dos cais carcomidos em que procurei abrigo. Visitei vários portos semelhantes, entre naufrágios e braçadas e ameaças de afogamento. Este ciclo se repetiu demais antes do que veio depois.
Não éramos muito diferentes das baratas com quem dividíamos o apartamento. Feijão viajando de cogumelos, se queixando do fedor de merda, e seu irmão Queijo lhe aconselhando, ‘não te aprofunda.’ Tuca compondo uma trilha sonora. Ciego tragando o último cigarro.
A Nina louca de pedra tinha seu próprio apartamento, sereia que atraía um maltrapilho de cada vez pra afugentar seus pesadelos com uma trepada e canções da Joni Mitchell. No andar de baixo, o casal de sambistas, zeladores e despreocupados, sabiam que tudo isto ia passar.
Falando em covardia, brigas, vi poucas. Anos depois, um amigo pavio curto e alto de trago, foi visitar outro bando de despirocados do qual era membro em outro edifício e cidade. Como não estávamos, deixou bilhete: pelo menos aqui, ninguém vai sair no braço comigo.’
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PANETTONE & COCA COLA FAMÍLIA
Em tempo de baseado, as escolhas dietéticas se restringiam a coisas doces. O dia típico, que raramente incluía almoço ou jantar, tinha café na manhã, pão e soda durante o dia no cordão da calçada, e na volta pra casa, o esperado mingau de açúcar queimado comunal.
A menos que alguém desembestasse com alguma dieta e resolvesse passar 10 dias comendo apenas arroz integral e banchá. Fiz isto e quase desapareci. Mas a fome mesmo nunca doeu tanto na época quanto dói hoje em dia, quando pulo uma refeição.
Não é pra menos que magrinho era sinônimo de cara. E pra desbundado também se usava o sentido não figurado. Mesmo rechonchudos perdem peso na estrada, mas a maioria já começava seco, e seguia assim porque matava fome com favos de mel, pão e leite condensado.
Dor de dente era frequente. Se usava cravo e atrolhação, nesta ordem. Com o tempo, a coisa piorou pros que tomaram o caminho das garrafas, dos moderadores de apetite e ligantes, do tipo optalidom e anfetamina. Maluco desdentado era comum, e barra pesada.
Éramos mais inofensivos. Cocaína, nem pensar. Mas houve a fase da morfina, do uruguaio baixinho e generoso Dario. Trouxe suficiente para sustentar uma dezena de vagabundos por três meses, três vezes por dia. Por sorte, as dores nos ossos se foram quando terminou.
Todo mundo fumava cigarro barato, Arizona, Presidente, ‘Oliú.’ Olhando desta distância, gastávamos dinheiro demais em porcarias e drogas baratas. Mas a parafernália serviu ao menos um objetivo: manter as barrigas iludidas e as pernadas lubrificadas.
A libido coletiva era rara como ingressos caros para concertos de rock, e filmes de contracultura. Nenhuma das duas situações eram partilhadas em aberto. Quem ganhava ingresso usava para si, é claro, e as trepadas noturnas raramente eram comentadas durante o dia.
Mas tinha desejo, claro. Entre poucos orgasmos repartidos que tive na época, nenhum me assegurou de que não ficaria encalhado, ou predisse a boa fortuna que me seguiu nos próximos vinte anos. Em compensação, tive conversas então que não teria nunca mais na vida.
Nos empanturrávamos de idéias modernistas, visões de uma supra realidade não acessível para quase ninguém mais. Em nossas cabeças, éramos membros de um clube de elite, destinado a mudar o mundo através de meios e ferramentas ainda não inventados.
Eu tinha a temeridade de julgar todo mundo pelo comprimento de seus cabelos, o estilo de suas calças de brim e a quantidade intrínseca das drogas que haviam ingerido, julgada pelo seu uso qualificado de gírias e pela atitude vanguardista, o que quer que isto significasse.
Claro que me dei muito mal. No final, não pude culpar ninguém pela minha tontura. Aprendi tão pouco naqueles anos. Tinha tanto medo de ser descoberto pela fraude que sempre achei que era. Embasbacado, levei mais tempo do que o resto pra achar meu caminho de volta.
Não vejo sentido nestas obsessões irrisórias, que relembro de olhos secos e batimentos cardíacos regulares. Outros sobreviventes devem ter memórias mais relevantes. Triste quando o passado de alguém não eleva sua pressão sangüínea. Mas o panettone era delicioso.
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O GRANDE ROUBO DA BILHETERIA

Apelidos são dados, raramente adotados, e quase nunca amados pelo apelidado. É rótulo imposto à pessoa, independentemente de sua vontade; com o tempo, acaba se acostumando. O caso do Júlio Flash é diferente, como quase tudo a seu respeito: é possível que ele mesmo tenha se auto-entitulado. Mas não se esperava que o sentido que tinha em mente mudasse tão radicalmente.
Tenho a impressão que no momento em que decidiu assinar seus desenhos com aquela palavra, imaginava adicionar uma centelha à sua marca, quase como um clarão alumiando a trivialidade de seu nome de família. E durante anos, foi assim que a maioria se conformou à visão que tinha de si mesmo: rápido e fagueiro.
Um evento capcioso, porém, mudou o rumo de sua reputação, e adicionou ao apelido antes tão etéreo e mitológico, uma dimensão patife e sorrateira. Uma camada de fuligem acabou se aderindo à sua história pessoal, a despeito de seus protestos. Quando isto acontece, é inútil tentar se re-escrever o destino: a vida o determina e ponto final.
Ele tem lutado a vida inteira contra esta maré de detritos que se enrabichou à sua trajetória, como alguém que foge da sala onde acabou de peidar: qualquer ar é mais respirável do que o que acabou de poluir. Mas enquanto corre para o anonimato, mais cômodo do que assumir autoria de ato tão abjeto, entrega o controle da narrativa desagradável àqueles que lesou.
Nosso papel nas memórias de outras pessoas é quase sempre irrelevante, ou contrapeso às qualidades da personagem principal. Como sacanagem é mais ruidosa do que virtude, um ato impensado, e anos de negativas de que sequer aconteceu, terminam valorizando hipócritas e diletantes, cheios de correções, suspeita e suposições.
Alguém sempre pode argumentar contra a estúpida aspiração de incorruptibilidade virginal, de resto levada à extremos por fanáticos e psicopatas. Mas o que o pobre Júlio se auto-impôs foi pior: perda de credibilidade com seus amigos, abundante há apenas alguns anos antes, e agora ainda mais rara que seus telefonemas.
Como artista, Júlio sempre evocou a precisão inata de savants and autistas; a exuberância de sua arte, ou a genialidade pictórica de seu traço, rapidamente lhe conferiram admiração e respeito. Mas foi tudo revisado à luz daquele seu gesto fortuito. Muitos dos que acompanharam sua formação e maturidade com interesse, hoje sequer lhe dirigem a palavra.
Cavando um pouco mais fundo este poço, volto a um dia indefinido da década de 60, quando nos conhecemos numa sala de aula do Cruzeiro do Sul. Logo partilharíamos mais do que aquelas paredes que abandonamos antes que nos fornecessem lenços ou documentos. Dali ficamos amigos, loucos, amantes, e depois, apenas passagens resumidas na biografia de cada um.
O evento fictício ou real que redefiniu seu apelido se deu na cúspide final da era: ele enredado nas minúcias da cidade que enfim o devoraria, e eu começando vida nova num país estrangeiro. É um conto apócrifo e cauteloso, com mais permanência do que originalidade. O Júlio é apenas o protagonista desta versão, mas deve haver outras, com diferentes níveis de prejuízo.
Nosso homem encontrou sua pecha fatídica de maneira prosaica, quando aceitou trabalhar como bilheteiro num concerto de rock local. Quase certamente, os artistas no palco, a equipe de produção e as tietes da vez eram todos seus conhecidos, com maior ou menor grau de intimidade. O trabalho era modesto, assim como a provável comissão.
Antes que o concerto terminasse, porém, Júlio teve um flash fatal, talvez uma certeza lancinante de que a tal comissão não lhe cobriria os gastos, ou que no fundo, aquela era sua melhor oportunidade de começar tudo de novo, desta vez um pouco mais perto de seu coração selvagem. Ou isto ou qualquer outra coisa, o fato é que ele embolsou o dinheiro e caiu da boca.
Ou foi assim que me contou sua ex-mulher, e outros que ficaram sabendo e me passaram a triste notícia: meu amigo artista deu uma de cafajeste e deixou todo mundo na mão. Colocada desta maneira, a estória fica tão corriqueira como indefensável; ele se revelar um crápula também diz algo sobre meu próprio caráter e sobre a qualidade de meus julgamentos pessoais.
‘O magrinho pegou a grana e fugiu pra Santa Catarina,’ disseram. Todo mundo quis sua cabeça, mas só conseguiram arrancar seu coração, suficiente para apagar aquela centelha no nome e inaugurar em seu lugar, o fogo fátuo das intenções espúrias, tão atraentes em um momento, e tão dilaceradamente corruptíveis no seguinte.
Outro dia me contaram que nega tudo, o que me deixou ainda mais deprimido. Posso imaginá-lo na frente do espelho, se digladiando diariamente com a memória daquela falha e a ruptura de sua reputação. Ambas encareceram demais o custo de sua redenção, mesmo se pagar reparações ou seguir uma via crucis de arrependimento.
Deve estar mesmo de saco cheio de tentar explicar a mesquinharia que lhe custou o apelido. Mas um dia quem sabe escreva um livro sobre esta resvalada, e a lomba de sabão em que sua vida escorregou.
Ou talvez resolva quebrar minha cara por ter colocado no papel o que gostaria de tirar de circulação.

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FLAUTINHA & O SAGÜI DA BAHIA

Assim que ela viu o macaquinho, a caçada começou. Como qualquer bichano que se preze, sabia que se era pequeno, tinha vida própria e, principalmente, corria, ela tinha de sair atrás. Ele não teve tempo para nada e deu no pé em desabalada correria pela guarda do sofá, o tapete, o quarto, o banheiro, de volta ao sofá, o tapete, o quarto, a cozinha.
Enquanto os dois derrubavam coisas e pulavam sobre o toca-discos em moto contínuo, tentávamos compreender a decisão impensada do Mola, de trazê-lo da Bahia e transformar nossa central da Venâncio em circuito de corrida desvairada de animais.
Estava tudo errado, é claro. A natureza explica porque o sagüizinho não nascera no frio do sul. Também não estava ali para nos entreter, o que pra ser sincero, nunca aconteceu. Foi mais uma agonia, tentando separar aquela gatinha ágil e perigosa, linda mas mortal, do visitante cativo, que jamais conseguiria encontrar um lugar à salvo de suas presas afiadas.
Até hoje me pergunto por que cargas d’água o Mola removeu um bicho selvagem de seu habitat e cruzou o país sem um plano definido do que fazer com ele quando chegasse em casa. Quem sabe era órfão e lhe foi dado em confiança, mas não justifica.
Um dia espero perguntar-lhe a respeito. Porém, naquele momento, cerca de 1974 ou 5, só o que interessava era mantê-lo vivo e fora do alcance da Flautinha, o que era quase impossível: afinal, era seu território, onde reinou soberana por vários anos. Também preciso perguntar à Lígia o que lhe aconteceu depois que caí da boca.
No ano anterior, tivera uma experiência inesquecível ao ver uma revoada matinal de sagüis cruzar o topo das árvores da Floresta da Tijuca, no Rio, as sagüizinhas-mães carregando suas crias nas costas. Mesmo que por apenas alguns minutos, aquela visão aérea se imprimiu pra sempre na minha mente.
De resto, nunca tive maior contato com macacos ao longo da vida. Conheci um em Nova York, que de tão neurótico, havia comido parte de sua pata direita e vivia numa gaiola. Morava na cobertura de um artista venezuelano, no SoHo. Não preciso elaborar por que minha antipatia pelo tal ‘artiste’ foi imediata e permanente; nunca mais coloquei os pés na casa dele.
A gente faz estas cagadas com os animais, de adotá-los puramente para satisfazer nossas carências mais profundas. Posso dizer isto porque sou culpado do mesmo pecado, apesar de ter amado intensamente e, é quase certo, ter dedicado minhas melhores qualidades a um par de gatinhos dos quais nunca vou me esquecer, Boconcini e Margareta.
Ainda sonho com eles e não há duvida de que não só me deram muito mais do que jamais conseguiria lhes retribuir, como também me tornaram uma pessoa um pouco melhor, embora não se note. Mas também não nego que parte do meu impulso de ter animais domésticos é fruto de alguma ato falho, ou anseio por compensação afetiva insuperável.
Enfim, entre tantas marcadas, esta talvez não tenha sido a pior. Mas adotar animais selvagens é ainda mais questionável. Mesmo a atenção às suas necessidades específicas é limitada e falsa: é impossível substituir o ambiente inóspito para a qual nasceram pelos ‘paraísos’ artificiais que se constrói para eles, não importa quão fidedignos pareçam.
Deve haver alguma estória por trás do gesto tanto do Mola quanto do venezuelano mas ela não redime a leviandade e egoísmo de adotar um animal não domesticado e acreditar que se vai fazer dele um membro da família. Isto quase sempre tem consequências desastrosas, ou trágicas.
O caso horripilante do chimpanzé que vivia com um casal maduro americano, com quem vivia por praticamente toda sua vida, é exemplar. Andava de fraudas, comia com eles na mesa e tinha seu próprio quarto, exatamente como um filho que nunca tiveram. Supostamente tratava bem amigos e parentes.
Até que um dia, mudou de idéia e se enfureceu com uma conhecida que viera visitar-lhes. Não a matou mas arrancou a pele de seu rosto a dentadas e destruiu sua fisionomia. Ela foi uma das primeiras pessoas a receber um transplante de face, o que por si só já é meio tétrico, mas deixemos o comentário para outra ocasião. Pior para o macaco que foi morto pela polícia.
Uma tragédia perfeitamente evitável. Alguém deveria ter dito para o casal piedoso mas estúpido, que feras levam milênios para se domesticar. Com a maioria, o melhor é nem tentar e mesmo 12 mil anos de convívio com humanos não impedem que alguns gatos revertam ao estado selvagem em questão de meses.
Margareta era uma mini-gatinha, vivaz e inteligente que, a despeito de ter sido resgatada de um grupo de crápulas no Brooklyn que a usaram como bola de futebol, teve depois disto uma vida tranquila e memorável comigo. Embora traumatizada pelo que passou e relutante a ficar no colo de ninguém, era meiga e doce e jamais agressiva.
Mas dentro de si, o coração selvagem nunca deixou de bater. Quando ratinhos que moravam nas paredes de meu apê antigo no East Village finalmente escavaram o tijolo gasto e tentaram invadir minha casa, ela estava de guarda. Imediatamente abocanhou o primeiro que emergiu do buraco no caixilho da janela. Amedrontados, os outros bateram em retirada.
Com o ratinho preso entre os dentes, seu instinto foi brincar com ele antes de cumprir o programa previsto em seu DNA. Fiquei preocupado com doenças e tentei em vão tirar-lhe o troféu. Quando se viu acuada, decidiu devorá-lo ali mesmo, na nossa frente, para horror meu e do Boconcini.
Vê-la em seu estado natural, cru, pragmático e poderoso foi uma revelação que me deu nó no estômago, e fez seu irmão correr pra baixo da cama. Me arrependi de negar-lhe o prazer de brincar com sua presa, parte do ritual da refeição felina. E de forçá-la a viver num ambiente estéril em que pruridos humanos se sobrepõem ao que a natureza vem fazendo por milhões de anos.
Voltando à Flautinha, depois de uma centena de voltas em alta velocidade ao redor da casa, tentando abocanhar aquele sagüi, que não era bobo e não ia marcar para ela, teve de ser trancada no quarto, pelo menos, até que o Mola terminasse sua estória tola. Que àquela altura se tornara absolutamente irrelevante.

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