Noite Estrelada

Alvoroço Sangrento
na Grand Concourse

Fui chamado na delegacia de novo. Esta é a segunda vez este mês. Já conversei com o Vicente, expliquei-lhe que toda vez que ele apronta, não sou somente eu, mas todo mundo é afetado. Não me importo, mas afinal de contas, é 3 da manhã e tenho pacientes para cuidar daqui a algumas horas. Como sempre, uma vez solto, vai sair caminhando sem dar ouvidos pra ninguém.
Não tenho coragem de ligar pro seu irmão, porque sei que ele e sua esposa estão passando por um período difícil, e não preciso dizer por causa de quem. Seu relacionamento tem sido afetado demais pelo comportamento do Vicente, que aparece na casa deles nas horas mais inoportunas, geralmente alterado e para pedir outro empréstimo.
Não há casamento que aguente este tipo de interferência. Em nossas conversas, sempre tento enfatizar este ponto para ele. Afinal, o apoio incondicional de seu irmão é imprescindível. Sem ele, o Vicente estaria roubado, não sobreviveria uma nova crise.
E crises, foram tantas que depois de todos estes anos, precisaria consultar minhas notas para saber quantas. Por outro lado, tenho simpatia – não diria pena – pelo seu sofrimento, os demônios que encontra no seu dia a dia, terrores que o amedrontam e não lhe deixam dormir direito. Esta insônia induzida por pesadelos só agrava seu estado.
E depois, é claro, tem a sua criatividade, cuja selvageria praticamente o isola da convivência social. Na verdade, muita gente me confessou que sente um incômodo na presença dele, especialmente quando branda seus pincéis na tela. É sua defesa, carapaça de proteção, mas vá explicar isto para aqueles com quem gritou e ofendeu. Foram muitos.

No final, poucos reconhecem seu talento. Para eles, suas pinturas são ofensivas, quase pornográficas em sua distorção de cores e formas. Eu entendo. Não é fácil admirá-las pelo que são, estudos de paisagens e flores e estrelas, retratadas em traços viris e tonalidades exacerbadas. O pessoal gosta mais de pinturas românticas, poéticas. Cá entre nós, insossas, mas isto é só minha opinião.

II

Em nossas conversas, também, sempre vem à tona sua solidão. Aí sim, me dá pena. Compaixão, mesmo. Nenhuma moça sensível iria sobreviver à convivência com alguém de personalidade tão abrasiva. Por isto, a despeito dos riscos pra sua saúde, faço vistas grossas à seu hábito de dormir com prostitutas.

Santas criaturas, só mesmo elas para oferecer conforto e companhia para alma tão aflita. Ao mesmo tempo, está sempre se metendo em brigas e bebedeiras, sem falar que gasta o que não tem nestas noitadas. O Vicente não tem a mínima noção de proporção e é completamente alheio ao conceito de guardar dinheiro para pagar o aluguel, ou comida, no dia seguinte.
Enfim, estou aqui, aguardando o inspetor Rulan, que à esta altura, conheço bem. Tem sido paciente mas a cada vez que venho, temo que seja aquele momento de ruptura, em que finalmente vai desabafar e fechar o caso, por assim dizer, com o Vicente. Pudera. O tanto que aturou de fúria dos seus superiores, quando liberou sem fiança este, que para eles, não passa de um arruaceiro.
Depois de alguns momentos, apareceu apoiado pelo Rulan. Descabelado, a cara suja, com um cobertor que os policiais que o apreenderam lhe deram. Desta vez, estava pelado perto do reservatório do Central Park, fazendo sabe-se lá o que. Eu sei que ele é inofensivo, incapaz de matar uma mosca, mas ninguém tem obrigação de saber disto.
Quer dizer, ai de quem o confronte quando está sendo acossado por seus temporais internos. Mas normalmente, ele é daqueles que dirige sua raiva para si mesmo, o que é triste. Estou sempre temendo pelo pior. Felizmente, já me acostumei a me preparar para tudo, e trouxe comigo uma muda de roupa; esta não é a primeira nem será a última vez que se despe em público.
Para ele, não é nem ’em público.’ O faz não é por querer se expor mas como tentativa de se livrar das cadeias que, imagina, o aprisionam.
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Tenho certeza que se pudesse, iria mais fundo, mas agradeço aos céus que mesmo que o pensamento possa ter lhe ocorrido, nunca tentou nada assim. Claro, me preocupo, como Theo se preocupa também. Mas não há muito que se possa fazer a respeito.
No mês passado, cheguei a perder o sono, porque quando o fui buscar, estava com a mão coberta de sangue. O Rulan me falou que um vigilante do metrô o achou num canto da plataforma da Herald Square. Mas nem ele nem ninguém soube explicar o que aconteceu. Balbuciou algo como garrafas quebradas, mas não fiz progresso nenhum quando pedi mais detalhes.

III

Nossos diálogos seguidamente se dão em círculos, e repetição é frequente, tanto de seus relatos, como opiniões que por vezes parecem lhe consumir. Passou uma sessão inteira, por exemplo, discutindo o trabalho de seu amigo Paulo, que também pinta. Fala dele com um misto de admiração e ressentimento.
Não sei muito o que dizer desta amizade, mas é outra coisa que não tenho escolha senão aceitar. Afinal, Paulo é um dos únicos que parece ter acesso à ele, os dois falam a mesma língua. Mas temo que a relação deles não é em pé de igualdade.
Nunca vi o Vicente expressar ciúme, mas o fato é que Paulo fala como se o reconhecimento pelo seu gênio, não só não demora, como é mais do que merecido. Enquanto isto, sempre critica as pinturas do Vicente.
É daqueles que rumores o seguem aonde quer que vá. Dizem que agrediu a esposa, largou os filhos ao deus dará. Mas é talentoso, isto não se pode negar.
Não sei se ofereceu ajuda financeira ao Vicente; só o vejo por perto quando este tem algum que Theo ou eu mesmo lhe alcancei. Não quero dizer que seja interesseiro; acho mesmo que os dois se admiram e se completam como amigos. Mas Paulo é muito mais funcional e tem mais picardia de vida, enquanto o Vicente, emocionalmente, é uma criança.
Em temperamento, não poderiam ser mais diferentes. Enquanto Paulo é um bon vivant, que gosta dos prazeres da mesa e da cama, e vive rodeado de moçoilas, cujas idades não estou certo de que sejam apropriadas, Vicente é um casto, com um espírito de devoção quase religioso, e cujas experiências sexuais frequentemente terminam em casos de decepção amorosa.
Muitas vezes me contou o quanto se apaixonou por esta ou aquela ‘moça da noite,’ apenas para se conformar depois, com tremenda culpa, de que ela não é a mulher decidida como é sua mãe. Além do mais, a maioria delas foram e permanecem sendo amantes de Paulo, a quem dão prioridade quando está na cidade.
Pode dar a impressão de que não gosto dele, mas a verdade é que sua atitude de galo de rinha, suas estórias fantasiosas que não me convencem, até sua apologia da espada, a qual pratica com denodo, me desagradam. Não me parece que no fundo, coloque os interesses e o bem estar do Vicente acima de seus próprios mimos, e principalmente, sua constante dureza. Em nome dela, faz qualquer coisa.

IV

Como sempre, quando vou buscá-lo na delegacia, Vicente quase não abre a boca. Vergonha e embaraço parecem sufocar qualquer tentativa de entender o por quê de estar nesta situação. Tem consciência desta incapacidade e seus surtos são lembretes frequentes de que qualquer fator extemporâneo pode disparar outra crise.
Mas como é de seu costume, nunca perde a chance de me surpreender. Me disse que quer fazer um retrato meu, em troca de meus serviços. Agora, o que posso fazer com uma pintura, que mesmo que seja um monumento à arte moderna, certamente não terá nenhum valor comercial? Não disse nada. Sei que do fundo de seu coração, acha que posso ajudá-lo e quer se mostrar agradecido.
Eu mesmo tenho minhas dúvidas. Às vezes, me parece que o Vicente está numa dimensão tão alheia que não tenho como alcançá-lo nem sei há maneira de fazê-lo. Não é que não tenha cura; é o mundo que está doente, e almas como a dele, só têm a perder tentando sobreviver uma realidade tão brutal como é nossa. Mas enfim.
Lhe deixei na porta da casa de cômodos do Bronx onde tem vivido, depois que me prometeu que estava bem, ia tomar uma banho de bacia e dormir um pouco. Me comprometi a ligar-lhe na manhã, e ficamos de quem sabe, dar uma caminhada pela cidade para ver as decorações de Natal e esperar que sua melancolia lhe dê uma pausa. Assim mesmo, fui pra casa preocupado.
O amanhecer está chegando, mal tenho tempo de preparar uma xícara de café, quando a caseira me diz que o Paulo tinha passado lá ontem à noite e lhe disse que ia visitar Vicente na pensão. Não sei por que, me deu um aperto no coração. Preparava minha valise para ir pro consultório, quando o telefone tocou. Era da Emergência do Belllevue, e o Vicente tinha chegado lá, ensanguentado e sem uma orelha.

(*) A versão em inglês deste conto foi publicada no Colltales.com em 27/9/2017.