Vazamento de Memória

Norton MCCOLL

No derradeiro momento do ser, os fatos se alinham imutáveis a sua frente, todos contidos na mesma centelha insignificante de tempo, cada um com sua intensidade e seu desafio, todos eles nítidos e distintos.

1:33 da madrugada. No instante que se seguiu ao “BANG,” um torvelinho de pensamentos. Na verdade, sua vida escorrendo sem remédio diante de si.

O belo bebê que fora. seu primeiro dia na escola. o sorriso da professora quando respondeu errado a questão oral. o destaque da primeira medalha na competição esportiva. seu desenvolvimento brilhante na instituição tradicional de ensino. as lágrimas nos olhos de sua mãe quando recebeu o diploma. seu primeiro emprego. o desejo de ingresso na vida pública. a campanha entre os amigos. desde cedo levantando infatigavelmente a bandeira da paz no sentido mais amplo. a alegria por ser eleito. o começo do reconhecimento que passou a ter em sua cidade. depois na Corporação de Cidades. o aperto de mão do ministro elogiando sua atração contra a violência. o convite da Corporação Geral para participar numa missão externa. a surpresa ao saber que não seria apenas uma ida à outra região de seu mundo. seria um planeta mais afastado, pertencente à influência de uma estrela de grandeza bem menor. o puxado treinamento nos costumes daquele outro mundo. as primeiras imagens dos habitantes, muito semelhantes fisicamente. a dúvida no últimos dias sobre o sucesso de seu trabalho. a saudade imensa já antevista nos olhos dos amigos e parentes. a partida esfuziante na nave. a decepção dos primeiros dias na nova terra. o impacto da vivência com uma realidade ainda mais cruel que a que conhecera. a consternação diante do desapego pela vida. finalmente o surgimento de um sentimento pessoal ao conhecer uma habitante daquele mundo. o elo de sentimentos que sentiu crescer entre eles. a ajuda que ela dava em suas fascinantes campanhas pela paz. as viagens constante. as reações de gente belicosa, de fábricas de armas. o ruído na porta da cozinha aquela noite. a mulher o sacudindo para ver o que era. a procura do chinelo no escuro. a porta que se abre para a luz de fora. o estampido que turvara completamente sua visão. a queda ao chão. a mulher correndo aos gritos. seu horror ainda mais intenso quando ergueu a mão inerte do amado. o líquido azulado deslizava até o tapete. era o mesmo que jorrava sem cessar do buraco em seu peito.

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